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A superfície do mundo​

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Nesta exposição estão presentes pequenos núcleos de obras que parecem ocupadas pelo silêncio e por camadas de significados de uma possível intimidade, um elemento estrutural que age, na sua inquieta emergência, como uma membrana entre nós e o mundo. Lilian Camelli sempre coloca em cena algo excessivamente familiar, algo sedimentado que desperta, ao mesmo tempo, uma sensação de estranhamento e torna-se, por isso mesmo, enigmático.

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Sua pintura figurativa contém impulsos narrativos e parece se apropriar das sutilezas de uma vida cotidiana, repleta de impermanências, incertezas e indeterminações, como se nada pudesse romper uma espécie de rotina imaculada. Algo nos intimida, como se estivéssemos penetrando ou se apropriando de uma vida particularizada que incita a nossa imaginação, nesses espaços que, é bem provável, foram transitoriamente habitados. Luigi Ghirri, que fotografou magistralmente o ateliê de Morandi em Bolonha, afirmou que esses alguns espaços desaceleram o olhar, compõem um segredo sutil de imagens que sintetizam o repouso e o movimento.

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Lilian Camelli desenvolve uma articulação entre campos de cor, povoados por vestígios de sensações, com a presença de objetos com suas inumeráveis variações, seja pela presença de cortinas, camas, armários, espelhos, cadeiras ou abajures, como protagonistas de um passado concreto, uma biografia com suas cenas, desprovidas da figura humana, que estabelecem uma convivência, sem trazer discordâncias. Um vazio como um espaço pleno de acontecimentos.

Nosso olhar gravita na variedade de recursos composicionais e incidências luminosas, que repousam nas linhas majestosas dos objetos, aliados a um vocabulário plástico para traduzir esse contrafluxo das vidas ali vividas. Um entrelaçamento do mundo físico com o mundo das imagens que flagram situações corriqueiras que acreditamos conhecer. Essas pinturas instauram uma margem de opacidade ao revelar sentidos que florescem no fio dessas narrativas inconclusivas.

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O apaziguamento cromático é como um balbucio que parece romper essa vivência silenciosa e intersubjetiva. Ficamos suspensos em duas leituras, procurando uma interlocução ou, talvez, ancorando em outro continente, nesse mundo opaco, silencioso, sem estridência, anônimo, mas que desenha a sua espessura. As pinturas de Lilian Camelli interagem como uma

 

interrogação, como um eixo condutor do seu fluxo poético, com uma intensidade inesperada. Na iminência do seu aparecimento, toda imagem representada, ao alinhar as ideias em um outro cenário, traz a memória de um episódio atrás de si. Está presente uma ressignificação do lugar comum, de cenas corriqueiras do dia a dia, quase biográficas trazendo uma ativação do olhar para a restituição da experiência direta com o mundo.

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Na sua trajetória rigorosa e constante ao buscar uma execução livre da pintura, a cena intimista é capturada por um contato quase meditativo, um esconder/revelar através de dispositivos plásticos, uma fusão pictórica dos densos interiores vazios, com uma perturbadora e, ao mesmo tempo, lírica espacialidade, extraindo uma gramática poética de possíveis acontecimentos cotidianos. Apenas fragmentos ou, quem sabe, uma reconstrução de um passado, que é um tema da estética das ruínas arquitetônicas, amplamente retratada por Hubert Robert. As imagens emergem de cenários silenciosos que pavimentam emoções dotadas de um vazio contido, como se fosse uma estética em repouso, inanimadas, trazendo uma sinfonia cênica de um universo anônimo.

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A representação de locais transitoriamente habitados sugere deslocamentos de um ir e vir agora ausentes, mas reativados pelos pincéis de Lilian Camelli. Memórias que emergem nas suas obras, um enxergar entre as frestas, na busca de uma ordem pictórica, como uma tentativa de recuperar o valor das citações de um mundo ao redor; o lugar lá fora e o lá dentro, um horizonte para a intersubjetividade, como se houvesse um divórcio entre a realidade e o nosso imaginário. O filósofo Maurice Merleau-Ponty afirmou, no seu livro O filósofo e sua sombra, que “as coisas estão apenas entreabertas diante de nós, reveladas e escondidas”. Lilian Camelli nos expõe ao reconhecimento de uma intimidade, de um espaço à disposição das suas tintas, algo que ali reside, além das aparências.

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Vanda Klabin2022

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