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Encruzilhada

Bom e mau, grande e pequeno, velho e novo: as coisas coincidem. A série de pinturas abstratas de Lilian Camelli vive num tipo de pulsão em que nada afasta o inverso. Algo de uma alternância de formas que não corresponde à mudança intrincada de mais nada, como se os trabalhos caminhassem para algum lugar, mas parecessem sempre perder o rumo. Ao colocar os termos em sentido provisório, eles são sempre incertos: três ou quatro linhas formam uma escada, uma mancha azul se transforma em lago e daí em diante. O maior barato está justamente essa processualidade, que parece guardar certa vontade por pintar uma realidade que tem o hábito de perguntar a si mesma se o mundo ainda está lá fora. Em sentido inverso ao real que ensina a pintar, Lilian pinta para aprender a ver o mundo. Afinal, inexistindo identificação definida, tudo é remotamente linha e cor. Mas, se isso é verdade, fica reservado um espaço subsidiário à figuração. Aqui ela se forma a partir de objetos reais acidentalmente constituídos, que, precisamente na conta disso, esclarecem o mundo à luz da pintura ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, partem da realidade para fazer abstração. As obras caminham pela beira. Querem contornar uma paisagem para garantir que saem de algum lugar, mas, quando param para olhar à sua volta, notam não ter sequer definido um espaço para esse recorte. 


Acontece que a dimensão abstrata dessas pinturas não é deglutida pela imposição de uma arbitrariedade completa sobre o que se representa. A abstração aqui caminha no sentido de uma espécie de tentativa fugaz por montar os pedaços de novo, por preencher as lacunas do que não se lembra na lembrança. Feito uma negociação entre a memória e a imaginação, as recordações íntimas exercitam imagens afetivas que já perderam um pino da sua integridade (e que, por essa razão, só podem ser reconstituídas parcialmente). Campos chapados ou figuras que se apresentam pela metade parecem corresponder ao pedaço de uma lembrança incerta, à imagem afetiva já parcialmente perdida ou algo de uma ordem aversiva a determinações. Já disse o poeta que a memória é uma ilha de edição*. E, da minha parte, já estou convencido que o caráter incerto que titubeia a pintura abstrata de Lilian consente um tipo de materialidade que torna cada uma das pinturas, sobretudo, um ponto de equilíbrio entre o mundo e o que se percebe. 


A figuração é, para Lilian, o fantasma da abstração, o que garante ao trabalho que seja sempre processo. Ao ativar a temporalidade da percepção, nada que se mostre de imediato parece convir. Os elementos, na verdade, voltam-se a um jogo moroso que parece fazer das figuras que se formem com certa irregularidade que dá chão à encruzilhada entre o certo e o incerto, o real e o fictício, o figurativo e o abstrato que habita as obras. Através de um agora que sempre escapa, as obras convidam a um intervalo de formação – uma espera até que os vestígios das figuras comecem a aparecer. Divertindo-se com a própria duração, configuram e reconfiguram o que se vê incansavelmente.


Acredito, na verdade, que existe aqui algo de uma tentativa de esclarecimento através da pintura ao passo em que Lilian procura persistentemente lembrar que a memória é produto da imaginação. Isto é, que não existe nela neutralidade ou um alinhamento preciso: a dimensão afetiva reconfigura os fatos e dá margem a uma lembrança que, ao compreender a si, entende que não há como não haver lacunas a serem preenchidas ou simplesmente obliteradas nas imagens oriundas daquele pouco que habitualmente lembramos de percepções passadas. Mas, com a omissão progressiva prometida pelo tempo, fica aberta a janela para a imaginação reorganizar tudo como bem entende. Desde um espaço colorido que se transforma em pássaro até uma linha expansiva que toma a fisionomia de uma cerca. Essas imagens, no fundo, parecem reunir os pedaços do que realmente se lembra das paisagens, algo de uma indeterminação imagética da memória visual que é uma eterna armadilha.


Questões de ausência associadas a essa nebulosidade aparecem inicialmente nas pinturas de interiores produzidas pela artista, com corredores repletos de portas atrás de portas que não chegam a lugar algum, que desdobram aquela recordação que, apesar de desgastada, insiste em lembrar de como eram os espaços. O desembocar, então, nas telas abstratas é, sobretudo, o reconhecimento do fracasso garantido da vontade por representar a memória, é um compromisso com a realidade concreta. Geralmente através de manchas, campos chapados de cor ou do delineamento incompleto de figuras que terminam em um espaço indeterminado e, aparentemente, sempre à espera de algo ainda por chegar, as telas edificam esses espaços turvos que se esvaziam mais e mais na memória. E o esforço infindável, daí, por reconstruir uma imagem que nunca dá conta do que quer representar resulta das incertezas de um lugar impossível. É a desconfiança de uma vida repleta de desencontros, em que se promete muita coisa e cumpre pouca. Com figuras que negam a figuração e linhas que negam a abstração, fica reservado o desentendimento da pintura consigo mesma: uma encruzilhada entre a memória e o que se lembra, entre o real e o que se vê. Esse caráter processual da imagem, de elementos eternamente a se formar, leva o presente a parecer sempre adiado e, com isso, a ambiguidade de certa concretude que é paralela e gradualmente negada e retomada – e que, provavelmente, é o tipo de nebulosidade esclarecedora que corresponde à maior virtude da arte.

 

A essa realidade voraz e apressada, em que a possibilidade reflexiva da imagem é asfixiada em nome de uma virtualização que falsamente tornaria ver e entender sinônimos um do outro, colide uma razão instrumental carregada de um empobrecimento da experiência concreta com o mundo da pior espécie. Gosto de pensar que Lilian procure uma porta de saída, uma vírgula no meio da sentença. Só assim é que parece possível acreditar que seja possível se mover com maior distância desse condicionamento reificante e afobado que pesa a barra de qualquer vontade autêntica de vida alheia à produção. Esses trabalhos, no fim das contas, caminham na direção de um lembrete de que a melhor parte da vida está em seus instantes mais lentos, cotidianos e ingênuos – que, quando passam, deixam mesmo uma saudade que não passa. Viram quase constatações de que as atividades mais prazerosas da vida não poderiam ser outras senão as mais francas e modestas.

Pintar aqui é, no fundo, a tentativa de fazer a vida valer a pena. De dar algum compasso ou sentido para seguir firme, sabendo que tudo vira rapidamente um vício sem razão. O tempo passa e a estaca zero sempre volta, como uma esfinge que assombra os dias de entusiasmo de qualquer um. É essa eterna falta de garantia em que se evita pensar, mas que, na sala, todos têm sempre a clareza contrariada de as suas maiores seguranças serem, na verdade, tão incertas. E, quando a barra pesa, Lilian parece pintar como se estivesse perguntando às pinturas o que fazer daí em diante. É provavelmente por isso que a pergunta parece sempre melhor respondida nas pinturas, que, afinal, respondendo a ela da melhor forma, não dão mesmo resposta nenhuma.

Gabriel San Martin, 2023

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* Verso do poeta baiano Waly Salomão.

 © 2023 by Lilian Camelli

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