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Quase memória

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"Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo".
 

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José Saramago

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De origem paraguaia mas residente no Brasil há mais de trinta anos, Lilian Camelli faz da pintura um território de pertencimento, abdicando dos temas grandiloquentes em prol de um repertório íntimo e afetivo, próxima da tradição da natureza-morta e da pintura de gênero.

É através da prática artística que Camelli elabora suas raízes e memórias -- a infância simples, as relações subjetivas constituídas no espaço doméstico, os saberes femininos tantas vezes invisibilizados, a atmosfera nostálgica própria dos corredores moventes da memória. Sabemos, porém, que quando o assunto é arte, mesmo os aspectos mais autobiográficos e particulares ganham contornos coletivos, compartilhados. Por isso, diante dessas obras, não é raro experimentarmos uma estranha familiaridade, certa sensação de que estamos diante de espaços previamente conhecidos. São obras que sugerem intimidade (a começar pela escala de tendência diminuta, o que exige uma aproximação do corpo) e nos levam a revisitar lembranças longínquas e histórias de família, ou imaginar e projetar narrativas, cenas e personagens.

Proustiana, Camelli modela a nostalgia através de detalhes, objetos e indícios que demandam uma contemplação mais demorada, na contramão do consumo apressado das imagens cotidianas e do imperativo da informação. A brisa que movimenta a cortina translúcida e o mobiliário de gosto colonial, por exemplo, insinuam um resto de calmaria que já não existe, e nos fazem um convite a desacelerar, diminuir o passo. Junto a eles, outros signos como detalhes de azulejos, espelhos, superfícies estampadas, castiçais, jarras esmaltadas, cadeiras vazias e solitárias e lampiões antigos nos transportam para uma temporalidade necessariamente passada, que não cessa em retornar como imagem. Embora nenhuma dessas obras exiba qualquer figura humana, é atributo de Camelli dotá-las de humanidade através de aspectos psicológicos, sobretudo os de cunho melancólico e solitário. Jamais se trata de objetos quaisquer, como meros itens industriais, ao contrário, todos os seus personagens estão repletos de densidade subjetiva e singular, espécie de grandeza alheia aos desígnios do mercado.

Além disso, a perspectiva intuitiva da artista (trata-se de certa planaridade pictórica, ou “profundidade rasa”, para ser mais precisa) conduz nosso olhar para uma configuração espacial sem saída. Apesar do aparente aconchego, suas portas conduzem ao vazio, seus quartos e corredores costumam ter passagens interditadas e entrecortadas que não levam a lugar algum, constituindo um misto de ninho e aprisionamento; encanto e armadilha. Afinal, o que almejamos recuperar com o apelo à nostalgia? Aonde nos levará a busca pelo tempo perdido?

Ao debruçar-se obsessivamente sobre cenas e motivos interiores que se repetem e reincidem, Camelli a um só tempo afirma a lembrança e a modifica, atribuindo movimento ao sentido e nos levando a reconhecer memória e imaginação enquanto instâncias indissociáveis. Sabe-se que é difícil imaginar sem mergulhar, com mais ou menos intenção, nas gavetas do passado. Imaginar (isto é, expandir os horizontes negociáveis do possível) implica engajar-se com nossas próprias experiências e repertórios constituídos. Mas também não é possível lembrar sem uma dose de fabulação. Como diria Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição” e, mesmo por isso, passado e futuro são vetores que se entrecruzam e se transformam continuamente; ambos são campos de batalhas que não cessam, e cujo espaço de significação simbólica se dá no próprio presente.

 

Em todo esse percurso simultaneamente intuitivo e delicado, a obra de Lilian Camelli não busca responder ao calor dos acontecimentos, contrariamente, o que se costura é uma outra temporalidade, mais interessada em compreender o presente enquanto condição extemporânea. Ecos do passado se condensam nessas pinturas silenciosas, talvez por isso elas nos transportem para o tempo do devaneio.
 

Por fim, é preciso reforçar a importância da casa como motivo inesgotável para esta obra. A casa que é “o nosso canto no mundo [...] o nosso primeiro universo”, como diria Gaston Bachelard, é também aqui território profícuo para negociar o espaço e o tempo, o íntimo e o coletivo, o privado e o público. O que importa não é tanto a casa física e material, mas antes o desafio colocado por um exercício necessariamente subjetivo: o de construir para si um lugar para habitar.

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Pollyana Quintella, 2021

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